por Roger dos Santos Rosa

Professor Associado do Departamento de Medicina Social/UFRGS e dos Programas de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e em Ensino na Saúde.

Terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Em junho de 2016, a Presidência da República encaminhou ao Congresso Nacional uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), recebida sob nº 241/2016 na Câmara dos Deputados, com o objetivo de instituir o “Novo Regime Fiscal”.

O “Novo Regime Fiscal” proposto na PEC visava reverter, “no horizonte de médio e longo prazo, o quadro agudo de desequilíbrio fiscal em que, nos últimos anos, foi colocado o Governo Federal” (Exposição de Motivos da PEC). O objetivo da PEC era “estabilizar o crescimento da despesa primária, como instrumento para conter a expansão da dívida pública”. Segundo a Exposição de Motivos, propunha-se “a criação de um limite para o crescimento das despesas primária (sic) total do governo central”. Por despesa primária, entende-se a despesa governamental em que não são considerados os efeitos financeiros decorrentes dos juros e outros encargos da dívida. Essencialmente, a meta da PEC é o “crescimento real zero” das despesas primárias, referenciado apenas na inflação passada. 

A PEC 241 ou “PEC do Teto dos Gastos” altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), parte final da Constituição Federal de 1988, que contém as regras para a transição do regime constitucional anterior (1969) para o estabelecido pela “Constituição Cidadã” (1988), bem como estabelece diversas outras regras de caráter transitório. Originalmente, abrangia três artigos, dos quais o primeiro acrescentava cinco artigos ao ADCT, o segundo revogava um artigo de uma Emenda Constitucional (nº 86) e o último estabelecia que entrasse em vigor na data da publicação. Durante a tramitação na Câmara dos Deputados, o primeiro artigo da PEC foi modificado para acrescentar nove artigos ao ADCT, que detalharam mais algumas situações.

“Com esse aumento populacional, se o patamar das aplicações mínimas para as ações e serviços públicos de saúde mantiver apenas o poder aquisitivo atual (variação da inflação), o gasto público federal mínimo per capita será progressivamente reduzido”.

Pelo texto aprovado no Senado, a despesa federal primária para o exercício de 2017 será limitada ao valor pago em 2016, corrigido em 7,2%, inflação prevista para o período, como já consta no projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) do próximo ano. A partir de 2018, esses gastos só poderão aumentar de acordo com a inflação acumulada em doze meses, até junho do ano imediatamente anterior a que se refere a lei orçamentária. A sistemática vigorará por vinte exercícios financeiros, ou seja, de 2017 a 2036.

Algumas despesas não estarão sujeitas ao teto. É o caso das transferências de recursos da União para estados e municípios. Também não são abrangidos gastos para a realização de eleições e verbas para o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). 

A partir do décimo exercício da vigência do “Novo Regime Fiscal”, a Presidência da República poderá propor projeto de lei complementar para alterar o método de correção dos limites das despesas primárias uma vez a cada mandato presidencial.

Especificamente, as áreas de saúde e educação terão tratamento diferenciado para 2017. A saúde (a rigor, apenas as ações e serviços públicos de saúde - ASPS) terá 15% da Receita Corrente Líquida, que é o somatório arrecadado pelo governo, deduzido das transferências obrigatórias previstas na Constituição. A educação ficará com 18% da arrecadação de impostos. A partir de 2018, as duas áreas também seguirão o critério da inflação pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), calculado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

A PEC estabelece um limite global para as despesas e não tetos específicos por tipo de despesa. O recurso aplicado em saúde ou educação poderá, em tese, crescer além da inflação dos doze meses desde que o gasto total do governo não supere esse limite. Entretanto, como mais de 85% das despesas da União são obrigatórias, há muito pouca margem para compensações.

Para a área da saúde, destacamos grandes desafios a serem enfrentados em decorrência da PEC 241(55)/2016.

O primeiro diz respeito à variação apenas nominal dos valores destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS) ante o crescimento populacional previsto. Estima-se que a população brasileira aumentará de 206 milhões de habitantes em 2016 para 227 milhões em 2036. 

“A recente introdução de novas drogas no âmbito do SUS para o tratamento da hepatite C crônica e da artrite psoriásica ...) são exemplos de tecnologias não substitutivas, que impactam o orçamento público em saúde”.

Com esse aumento populacional, se o patamar das aplicações mínimas para as ações e serviços públicos de saúde mantiver apenas o poder aquisitivo atual (variação da inflação), o gasto público federal mínimo per capita será progressivamente reduzido. Ainda que as responsabilidades federais devam ser compartilhadas com as demais esferas subnacionais de governo (estados, municípios e Distrito Federal), o poder público federal parte de um patamar atualmente insuficiente (R$ 519 por habitante em 2016) com perspectivas de redução real ante o crescimento populacional e o longo período previsto para o “Novo Regime Fiscal”.

O segundo relaciona-se ao envelhecimento populacional e às demandas por saúde daí consequentes. De acordo com projeções do IBGE, em termos absolutos, a população brasileira com 60 anos ou mais, em 2036, representará praticamente o dobro da atual. Estima-se que passe de 24,9 milhões para 48,9 milhões de habitantes. Na faixa etária dos oitenta anos, a previsão é de 3,5 milhões para 8,8 milhões de pessoas. 

Sabe-se que os custos com o atendimento de saúde se elevam com a idade. O valor médio das internações no SUS, por exemplo, que representa um gasto expressivo do poder público, aumenta progressiva e sistematicamente da faixa etária dos adultos jovens até idosos de 60 a 69 anos. Assim, é provável que com o aumento da média etária, o valor médio dos tratamentos também tenda a subir, mesmo que apenas em termos nominais e se todas as demais variáveis se mantivessem constantes. 

O terceiro se relaciona à utilização do IPCA “geral” para a variação da inflação de despesas da saúde. O IPCA representa uma espécie de “média” de diferentes grupos e subgrupos de despesas das famílias com rendimentos mensais entre 1 e 40 salários mínimos, residentes em áreas urbanas em algumas regiões metropolitanas e cidades do País, disponível desde 1981. É um índice de preços utilizado pelo Banco Central para o sistema de metas de inflação desde 1999 e abrange variações ponderadas de nove grupos específicos (alimentação e bebidas, habitação, artigos de residência, vestuário, transportes, saúde e cuidados pessoais, despesas pessoais, educação e comunicação) e 465 subitens. O grupo de despesas com saúde e cuidados pessoais, por sua vez, engloba seis subgrupos. 

É fenômeno universal nas últimas décadas o crescimento mais acentuado dos custos no setor saúde com relação aos demais setores. A utilização do IPCA “geral” com relação a indicadores setoriais específicos para a saúde ao longo de 20 anos poderá gerar defasagens como pode ser verificado se compararmos suas evoluções. Tomando agosto de 1996 como base, observa-se que, em 20 anos (até setembro de 2016), a série temporal 433 do Banco Central (IPCA) apresentou uma variação de 252,1%, enquanto a série 1641 (IPCA “saúde e cuidados pessoais”) variou 260,9%. Em duas décadas, entre 1996 e 2016, apenas em dois anos a variação anual do IPCA “saúde e cuidados” pessoais foi menor do que a do IPCA “geral”.

“Em duas décadas, entre 1996 e 2016, apenas em dois anos a variação anual do IPCA 'saúde e cuidados pessoais' foi menor do que a do IPCA 'geral'”.

Outros indicadores de preços do setor saúde mostram a mesma tendência. Do índice de reajuste para planos de saúde individuais, divulgado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, ao IVCMH (Índice de Variação de Custos Médico-Hospitalares), do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar, todos, costumeiramente, ultrapassam o IPCA “geral”. Frise-se que esse fenômeno não é exclusivamente brasileiro, mas comum em diferentes sistemas de saúde. 

Finalmente, a incorporação de tecnologia na saúde pressiona de forma não relacionada à mera variação geral dos preços capturada pelo IPCA. São novos exames, procedimentos e tratamentos anteriormente não disponíveis, e que se incorporam ao arsenal terapêutico, para a promoção, a prevenção, o diagnóstico e o tratamento precoces, e a recuperação dos cidadãos brasileiros. 

A recente introdução de novas drogas no âmbito do SUS para o tratamento da hepatite C crônica e da artrite psoriásica, a ampliação do uso de medicamentos antirretrovirais para a infecção pelo HIV, a adoção de medicamentos via transdérmica (adesivo) para pacientes com demência leve e moderadamente grave do tipo Alzheimer, a adoção de fármaco inalatório para a fibrose cística e a inclusão do crosslinking corneano para ceratocone, entre outros, na cobertura do sistema público de saúde somente em 2015 e 2016, são exemplos de tecnologias não substitutivas, que impactam o orçamento público em saúde. Além disso, há situações como a concessão do aumento de preço (mais de 50%) autorizado no início do último trimestre (outubro/2016), para medicamentos como a penicilina, a fim de incentivar a indústria farmacêutica a produzir o medicamento, básico no tratamento da sífilis, que estava em falta no mercado. E é necessário considerar o surgimento de “novas” doenças, como as epidemias de dengue, chikungunya e, mais recentemente, a relacionada ao vírus zika com as complicações decorrentes, como, entre outros, a microcefalia. 

“Alternativas à PEC, como propostas que impactassem de forma positiva no PIB (Produto Interno Bruto) per capita e na melhoria da distribuição da renda e do patrimônio, deveriam receber prioridade”.

São desafios que impactam nos gastos públicos para além da variação inflacionária. Como já mencionado, a PEC estabelece um teto “máximo” para todas as despesas primárias com base no IPCA do ano anterior. Ainda que, para as despesas com saúde, tenha sido fixado um patamar “mínimo”, não havendo impedimento formal para que o Congresso Nacional destine parcela maior do orçamento federal para as ações e serviços públicos de saúde, é de se esperar forte pressão de diferentes grupos e lobbies para obter um crescimento acima da inflação e ampliar o máximo possível sua fatia na despesa total. Essa pressão poderá frustrar as tentativas de ampliação do “mínimo” para a saúde.

Alternativas à PEC, como propostas que impactassem de forma positiva no PIB (Produto Interno Bruto) per capita e na melhoria da distribuição da renda e do patrimônio, deveriam receber prioridade. A progressividade tributária e a eficiência na arrecadação poderiam ser opções. Do ponto de vista da Seguridade Social, é necessário rever a desoneração da folha de pagamentos, subsídios e renúncias. Da mesma forma, o retorno da cobrança de imposto de renda sobre lucros ou dividendos pagos pelas empresas a pessoas físicas, cuja taxação foi abolida pela Lei 9.249/95 e tornou o País um dos raros que não a adota, é alternativa a ser examinada.

Por último, cabe destacar que as medidas da PEC centram-se exclusivamente nas despesas primárias, sem abordar as despesas com juros e outros encargos da dívida pública. Tal “silêncio” da proposta é sintomático de como o “Novo Regime Fiscal” nasce: preservando velhas configurações do orçamento público federal.


ADverso/Edição 223 - Novembro/Dezembro - 2016

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